sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Verão siciliano: paisagens e sabores da ilha italiana



Rural: a sede da Regaleali, uma vinícola com pequena pousada e escola de cozinha
Foto: Bruno Agostini / O Globo
Rural: a sede da Regaleali, uma vinícola com pequena pousada e escola de cozinhaBRUNO AGOSTINI / O GLOBO

PALERMO - Estava visitando vinhedos Tascante aos pés do Monte Etna, berço de alguns dos vinhos mais incríveis da Itália, entre brancos e tintos. Dois arco-íris coloriam o céu sobre o parreiral acima do rico solo vulcânico, nas cercanias de Catânia. Sim, dois arco-íris. Sim, o Etna e seus cumes nevados. Estava há pouco tempo em solo siciliano, mas era o bastante para ficar apaixonado pela ilha. Foi quando o guia apontou para o chão, e disse: “Hummm, asparagi selvatici”. Eram aspargos selvagens, que ele cordialmente me ofereceu, indicando que deveriam ser comidos crus mesmo. Delícia! O cenário, a iguaria. Os vinhos feitos ali.
Nos dias seguintes cruzamos a ilha, atravessando as montanhas, percorrendo o litoral, comendo e bebendo em refeições memoráveis, tanto nas casas estreladas quanto nos endereços mais simples. Os pescados incrivelmente frescos, e tratados com pouca interferência pelos cozinheiros locais; os legumes e as frutas, os doces... A paixão se converteu em amor eterno. As comidas, a hospitalidade das pessoas, as paisagens. Dia a dia meu coração foi sendo flechado por ícones sicilianos. A ponto de embarcar no avião com destino a Roma com o peito já apertado de saudades. A Itália reserva aos viajantes muitos lugares fantásticos, lindos e saborosos. Mas não existe nada como a Sicília, suas praias e suas montanhas, que ficam ainda mais belas e gostosas nos meses de verão.
Além de Catânia, na Costa Leste da ilha, Palermo, a capital, no litoral norte, banhada pelo Mar Tirreno, é a principal porta de entrada dos turistas. São as duas cidades que possuem aeroportos com voos regulares a partir de Roma e de alguns outros destinos na Europa. São rivais: nas paredes malcuidadas de Palermo, não é difícil ler frases como “Ódio a Catânia”. Quando os dois times de futebol jogam pelo Campeonato Italiano, o rancor fica ainda mais latente. Porém os visitantes não precisam tomar partido, e o melhor a se fazer é aproveitar ambas — e, melhor ainda, tudo o que existe entre elas: as ruínas romanas, as praias, os hotéis de charme debruçados sobre os mares Tirreno, Mediterrâneo e Jônico.
Nesse arrebatamento siciliano é curioso notar que as duas principais cidades da ilha ao Sul da Itália não são bonitas. Na realidade, podem até ser consideradas feias, com os seus prédios desprovidos de qualquer charme, suas linhas retas, paredes em tons de cinza, estruturas pesadas. Palermo, uma das maiores cidade italianas, com mais de 700 mil habitantes, não é um destino turístico daqueles nos quais encontramos belezas para onde quer que a gente olhe. Há construções históricas, claro. Mas é preciso um bom guia de viagem a nos orientar para encontrarmos recantos como o chamado Quattro Canti, o cruzamento de duas ruas, com quatro esquinas que são obras de arte, erguidas entre 1609 e 1620, com fontes e estátuas, numa composição arquitetônica que representa as quatro estações do ano. A Sicília não é um destino fácil, e parte de seu deslumbramento vem daí.
No Sul, doces e templos gregos
O chef Corrado Assenza é um dos confeiteiros mais famosos da Itália, craque dos cannoli e da cassata. Ele serve suas criações na pequena cidade de Noto, no Sul da Sicília, com casario dourado devido às pedras usadas nas construções. No Caffè Sicilia, na rua principal do charmoso centro histórico, quem domina as vitrines e o cardápio são os doces, bonitos e saborosos, que exploram bem os ricos ingredientes da Sicília. Só isso já justificaria uma passadinha pelo lugar, localizado numa pontinha da região sul da ilha, ótimo ponto de partida para um roteiro meridional.
Corrado é uma celebridade. Só não dá expediente na casa, que está completando 130 anos, quando viaja para dar aulas e palestras em eventos de gastronomia como o Madrid Fusión. Inaugurado em 1892, o Caffè Sicilia pertence à sua família há gerações. Mas isso muita gente sabe. O que é quase um segredo é o talento do chef confeiteiro também para preparar pratos salgados.
— Encomendando com antecedência faço menus especiais, com ingredientes típicos da Sicília. Vou pessoalmente ao mercado escolher os produtos — diz o chef.
Explorando o mar e a terra Corrado monta menus surpreendentes, que combinam técnica, criatividade e frescor. Que tal, por exemplo, sardinhas cruas misturadas a algas marinhas sobre salada de arroz negro coroadas com ervinhas e aspargos? Ou uma espécie de omelete feita com tinta de lula? Um nhoque com mexilhões e camarões, quase crus? Craque nos pães, o chef transforma em esplendor uma simples foccacia coberta com molho de tomate, alcaparras e azeitonas.
— O segredo é a qualidade dos ingredientes — diz Corrado, modesto.
Para encerrar o menu especial, cassata, cannoli, sorvetes e outros doces que, afinal, são a especialidade do chef.
A cidade de Noto rende um belo passeio de uma tarde, aproveitando as mesinhas do lado de fora de bares e restaurantes, caminhando pelas agradáveis ruas do centro antigo, tomando um sorvete. Mas a grande estrela da parte sul da ilha é a cidade de Agrigento. Não exatamente pela área urbana, mas pelo chamado Vale dos Templos, um dos mais importantes sítios arqueológicos da Itália, com um exuberante conjunto de construções gregas que inclui templos muito bem preservados, que resistiram ao tempo e aos ataques de cartagineses e cristãos. É o tipo de lugar que, sozinho, justifica uma viagem à Sicília.
O mesmo se passa com o restaurante La Madia, a pouco mais de 40 quilômetros de distância de Agrigento, em Licata, uma cidade portuária com pouca oferta hoteleira — uma boa opção, típica da região e barata, é a Antica Dimora San Girolamo. A casa do chef Pino Cuttaia é a principal atração do lugar, atraindo a atenção de viajantes com interesses gastronômicos devido às duas estrelas concedidas pelo Guia Michelin. Suas refeições são uma experiência marcante para os apreciadores dos peixes e frutos do mar, que são a praia do chef. Transitando entre o receituário clássico da gastronomia italiana e criações de caráter intensamente autoral, Pino Cuttaia monta um cardápio preciso, divertido, comovente.
— Gosto de criar pratos que explorem o frescor dos ingredientes, que eles apresentem o que são de verdade, sem muitos elementos. Aprecio a exuberância da simplicidade — diz o chef.
O que Pino quer dizer com frescor e simplicidade é uma exaltação dos sabores marinhos, em todos os seus matizes e texturas. O melhor a se fazer é eleger um dos três menus-degustação: o “Classico” (€ 80, em seis etapas), o “In bianco e nero” (€ 95, com sete pratos) e o “Sapori di mare” (€ 115, com oito etapas), que são servidos para um mínimo de duas pessoas.
Em qualquer um deles há ótimos pães produzidos no restaurante, sempre quentinhos, prontos para derreter a manteiga. A cestinha é só o primeiro ato de uma refeição que tem tudo para conquistar lugar cativo entre as mais memoráveis de nossas vidas. Imagine, por exemplo, como é sensacional provar uma delicada espuma feita com leite de búfala coberta com uma película fina, espécie de nata de mozzarela, composição coroada com um pedaço de tomate e um toque de flor de sal, acomodada sobre uma linda panzanella (salada tradicional, feita com pedaços de tomate, azeite, manjericão e torradas). Ou, então, um fresquíssimo filé de arraia, servido com molho suavemente adocicado, coberto com pedaços da cartilagem deste peixe que ficam crocantes e saborosas. Outra receita imperdível é o atum semigrelhado, servido com flor de sal e um potinho cheio de carvão em brasa, que dão um perfume defumado ao prato, realçando os sabores.
Seja lá qual for o menu escolhido no La Madia, um prato, pelo menos, não pode faltar na refeição. Trata-se do battutino di gambero rosso, maionese di bottarga di tonno e olio al mandarino, um show de matéria-prima e técnica. A carne de camarões vermelhos é levemente temperada, servida com uma maionese feita de ovas de atum e azeite de tangerina. O prato pode ser pedido à parte (€ 30) ou como parte do cardápio “Sapori di mare”, que não tem esse nome à toa, e traz outras receitas que exploram as múltiplas possibilidades do Mar Mediterrâneo, com pratos como uma sublime sopa de lagosta com massa, de sabor equilibrado, intenso e ao mesmo tempo muito delicado.
O chef Pino Cuttaia também recria no La Madia receitas típicas da Sicília, como a “falsa” cassata salgada, que está no menu “In bianco e nero”; o arancino di riso con ragù di triglia e finocchietto selvatico (€ 25), versão marinha do típico bolinho de arroz, encontrado por toda a ilha, e o cannolo di melanzana perlina in pasta croccante (€ 22), que transforma o tradicional doce siciliano em entrada salgada. Encerrando o percurso, há macarons adoráveis que fariam bonito mesmo nos melhores restaurantes de Paris. No fim, quando o chef vai à mesa cumprimentar os comensais, aplausos são absolutamente inevitáveis, e merecidos.
Serviço:
Onde comer
Palermo
Lo Scudiero: Via Filippo Turati 7. Tel. (39) 091-581628.
Trattoria Dal Maestro Del Brodo di Bartolo: Via Pannieri 7. Tel. (39) 091-329523.
Licata
La Madia: Corso F. Re Capriata 22. Tel. (39) 0922-771443.ristorantelamadia.it

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