quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O último Saramago a gente nunca esquece



A última entrevista de José Saramago — concedida, meses antes de sua morte, ao jornalista português José Rodrigues dos Santos — já foi publicada em livro.

E, certamente, podemos esperar outras “últimas” imagens e palavras do grande escritor, Prêmio Nobel de literatura e merecedor de todas as homenagens. Quem sabe até cheguemos a conhecer seu último livro, o inacabado “Alabardas, alabardas! Espingardas, espingardas!”.
Livro Caim, de José SaramagoAté lá, o que nos fica como última obra é o delicioso e bem-humorado “Caim”, publicado em 2009. A sempre polêmica relação do autor com a religião, aqui focada no Deus do Antigo Testamento, consegue levar o leitor às gargalhadas e a retroceder várias páginas, algumas vezes, para retardar o fim da divertida experiência. Afinal, embora não seja o menor livro de Saramago, “Caim” tem letras grandes e pouco mais de 170 páginas. Então, há que se prolongar o prazer de sua degustação, ainda mais agora que o sabemos último.


Tema recorrente


A tal “relação polêmica” rendeu a ira da Igreja e muito assunto para teses, entrevistas, capítulos de livros ou livros inteiros, especialmente em Portugal — sua terra natal —, no Brasil — maior país lusófono — e na Espanha — pátria da mulher, Pilar Del Rio, para onde ele se mudou em 1993.


Alguns exemplos são “As faces de Deus na obra de um ateu”, da brasileira Salma Ferraz, com seu título mais do que explícito, e a ida do português João Céu e Silva ao Seminário da Luz para entrevistar o padre e professor de Teologia Carreira das Neves sobre a obra do conterrâneo para “Uma longa viagem com José Saramago”. Os dois livros são anteriores a “Caim” — portanto, não há como saber o que padre Carreira das Neves comentaria a seu respeito. Do “Evangelho segundo Jesus Cristo”, porém, ele diz: “(…) Como romance, não me choca. Leio-o como obra literária e acho que é boa, não tenho qualquer crítica. (…) Acho que não se justifica a polêmica. De uma maneira geral, os leitores não estão preparados para lê-lo. (…) E ainda por cima com estes contrastes de um Deus e de um demônio, é o Dante a trabalhar e isso me agrada profundamente (…).” Salma, por sua vez, escolheu a seguinte frase de Saramago como epígrafe de sua tese: : “Embora seja uma pessoa que não crê, que não tem fé, ou para usar a palavra certa, seja ateu, não posso ignorar que vivo num mundo que não é edificado na ausência da ideia Deus, mas, ao contrário, foi todo ele feito na suposição de uma entidade sobrenatural, transcendente, pai da criação.”


O tema também é recorrente em “José Saramago — O amor possível”, do jornalista espanhol Juan Arias, que teve a oportunidade de entrevistar o escritor antes que este recebesse o Prêmio Nobel. Num dos longos papos dos dois na ilha de Lanzarote, desta vez em torno das muitas imagens sacras que mantinha em sua última casa, Saramago explicou: “Não posso dizer em sã consciência que sou ateu, ninguém pode dizê-lo, porque o autêntico ateu seria alguém que vivesse numa sociedade na qual nunca tivesse existido a ideia de Deus, uma ideia de transcendência e, portanto, nem sequer a palavra ateu existiria nesse idioma. Sem Deus, não poderia existir a palavra ateu, nem a palavra ateísmo. (…) Mas Deus está aí, portanto, falo dele, não como uma obsessão.” Mais adiante, ele afirmava: “O que é evidente para mim é que, quando a humanidade acabar, não haverá mais Deus, porque não haverá ninguém para dizer a palavra Deus ou para nele pensar. Isso é claríssimo para mim. Mas, mesmo imaginando que a humanidade acabasse e, apesar disso, restasse Deus, não sabemos que Deus seria esse, que atributos teria, não sabemos nada.”


Orgulho e injustiça


Pois o deus que Saramago ironiza em “Caim” é cruel, injusto, orgulhoso, e age ao sabor dos próprios caprichos (que não são poucos). Juan Arias, cuja resenha do livro foi publicada no caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo, destaca em seu texto a frase que fecha o capítulo 6, em que são mencionados alguns episódios sombrios da Bíblia, como o de Abraão e Isaac e o da Torre de Babel: “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.” Tais “desentendimentos” geram momentos de grande indignação por parte do malfadado Caim — e de pura diversão para o leitor.
Arias cita a frase de Saramago “Deus é o grande silêncio do universo e o homem é o grito que dá sentido a esse silêncio” tanto na resenha quanto em seu livro de conversas — neste, diz a seu entrevistado, ou interlocutor, que ela agradou aos teólogos da Libertação da América Latina. Em “Caim”, porém, não há gritos — e a grandiosidade beira o ridículo.
É triste não ter mais “o próximo Saramago” a se aguardar na lista dos lançamentos literários. Mas dá uma estranha e íntima satisfação saber que “o último Saramago” foi um sorriso irônico para seus detratores — e, ao mesmo tempo, um texto altamente convidativo ao mais preguiçoso dos leitores.
Se você é daqueles que considera a obra do Nobel português um desafio e olha seus romances com desconfiança e cerimônia, comece pelo fim. Eu, pelo menos, sei que voltarei a “Caim” muitas e muitas vezes, especialmente quando estiver precisando rir um pouco.

Um comentário:

  1. Não há como largar essa delicia de obra. Estou lendo no meio de muito trabalho e estudo mas sempre me reservo alguns instantes de prazer lendo mais uma perola de Saramago.

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