segunda-feira, 4 de abril de 2011

Um roteiro noturno pela movida boêmia de Madri, do Mercado San Miguel à Calle de las Huertas


Interior do Mercado San Miguel / Foto: Eduardo Maia

MADRI - Você já respirou o ar puro no Passeio do Prado, se encantou com "Guernica" no Reina Sofia e entrou na fila para tirar uma foto ao lado da estátua do urso na Puerta del Sol. Mas Madri não dorme, e se você ainda tem forças, fome e sede para continuar a explorar essa que é uma das mais movimentadas capitais europeias, também não tem motivos para ir para a cama cedo. Para muita gente, só depois que o sol se põe é que surge uma Madri ainda mais interessante que a diurna.

A Madri da movida, aquele exercício quase olímpico de parar em bar em bar, aproveitando o melhor de todos, ou do tapeo, a arte de petiscar. A Madri do revitalizado Mercado San Miguel, um microcosmo da gastronomia espanhola. Ou a Madri da Calle de Huertas, uma espécie de Lapa ibérica onde tradição e modernidade convivem democraticamente. Ou a Madri de Malasaña, berço da moderna boemia que tornou a cidade um destino imperdível. Seja noite, seja dia, o centro de Madri parece até uma festa.
No Mercado San Miguel, um resumo gastronômico da Espanha

Na loja da Pinkleton Wine, a melhor seleção de vinhos, com rótulos de diversas partes do mundo / Foto: Eduardo Maia
A poucos passos de distância da Plaza Mayor, o Mercado San Miguel merece estar em qualquer roteiro pelo Centro antigo de Madri. Só uma visita ao prédio, do início do século passado, todo de ferro e vidro, já valeria a pena. Mas é a variedade de opções gastronômicas, que vão de bolinho de bacalhau a caviar, de cerveja a champanhe, o ponto alto do mercado, um bom lugar para o almoço ou para as primeiras cañas (o chope espanhol) da noite.
Essa face mais badalada do San Miguel é relativamente recente. Desde 1835, a Plaza San Miguel já era palco de feiras de peixes, frutas e outros itens alimentícios. A estrutura de ferro e vidro atual veio em 1916, para dar melhores condições de higiene ao local. Com os anos, o mercado perdeu sua importância comercial e acabou abandonado. O resgate veio em 2003, quando o prédio foi comprado por investidores, reformado e reaberto em 2009, voltado para a gastronomia.
São 33 lojas, a maioria voltada para a venda de comida e bebida para consumo interno. Se por fora a estrutura de ferro fundido e as grandes vidraças que fazem as vezes de paredes chamam a atenção, por dentro, o que marca mais são as fachadas de cada estande, talhadas em madeira.
O movimento no mercado é grande todos os dias, sobretudo na hora do almoço e no início da noite. Já nos finais de semana, a lotação é máxima sempre. Conseguir uma mesa comunitária no hall central é missão quase impossível, assim como um lugar cativo nos balcões mais disputados.
Funcionário da Mas Gourmet y Carrasco-Guijuelo, a loja de jamón: praticamente um rock star dentro do mercado / Foto: Eduardo Maia
Mas a ideia não é mesmo se fixar em um ponto específico e sim circular, mesmo com o mar de turistas e madrilenhos ali dentro. Um dos pontos obrigatórios é o restaurante El Pescado Original, especializado em frutos do mar. São camarões, caranguejos, calamares e petiscos de peixes que provocam justificadas filas. Anexo, fica um minimercado de peixes, lembrando um pouco os primórdios do San Miguel.
Ancestral também é o visual da loja de presuntos, a Mas Gourmets y Carrasco-Guijuelo. Peças de jamón e outros cortes suínos são expostos na tradicional forma espanhola, e os funcionários responsáveis por fatiar, pesar e vender o presunto têm sua atenção disputada como se fossem rock stars.
Entre os "comes", ainda há cozidos, acepipes típicos de botequim (aqueles com azeitonas recheadas enfiadas em palitos), croquetes, bolinhos de bacalhau, queijos, bocadillos, doces portugueses, roscas austríacas e até temaki.
Já entre os "bebes", a cerveja e a caña são bastante populares. Mas no mercado, o melhor negócio é aproveitar a farta oferta de vinhos e cavas. Em geral, se pode pagar por taça ou garrafa, e há sempre um funcionário para dar sugestões. Há lojas de todos os tamanhos e com todos os preços, mas os rótulos são quase sempre espanhóis, com destaque para os produtores de La Rioja. Apenas na Pinkleton & Wines, uma das maiores lojas do mercado, a carta vai além das fronteiras nacionais, com preços atraentes. Os vinhos e as cavas "do dia" saem por 3 euros a taça.
Tapas com caviar, uma das curiosidades do Mercado San Miguel, em Madri / Foto: Eduardo Maia
Para quem quer algo mais sofisticado, uma opção é o Puro Caviar, uma loja especializada na iguaria, com uma vasta carta de opções. Há tapas com caviar a 3 euros, o mesmo preço de shots de vodca russa. Da Europa Oriental, vêm também cervejas e embutidos vendidos numa carrocinha, perto das mesas comunitárias.
O mercado também reserva espaço para compras. Além dos peixes, é possível comprar frutas, legumes e verduras frescas, numa barraca que chama a atenção já do lado de fora. Outra loja, mais discreta, vende flores e itens de decoração de jardim. Há ainda estandes que vendem massas caseiras, grãos, temperos variados e pães. Os preços, se não estão entre os mais competitivos da praça, também não são nenhum roubo.
Já a livraria Sin Tarima é especializada em títulos sobre gastronomia e vinho, e vende acessórios para cozinha estilizados. Não deixa de ser um bom souvenir, além dos quilos a mais adquiridos entre essas paredes envidraçadas.
Malasaña e Chueca: da revolução à farra
Poucas palavras definem tão bem o espírito boêmio madrilenho como movida, termo para o hábito de andar de bar em bar, sem se prender muito a nenhum deles, durante a noite. E poucos lugares da cidade têm essa tradição tão enraizada como Malasaña, bairro que já se levantou contra a ocupação das tropas de Napoleão Bonaparte e viu surgir, no final dos 1970, a movida madrilenha. Junto com seu vizinho Chueca (o bairro da comunidade gay), é ainda uma das áreas mais badaladas da cidade.
Fachada do La Bardemcilla, restaurante da família do ator Javier Bardem em Chueca / Foto: Eduardo Maia
Localizado ao norte da Gran Vía, uma das principais avenidas do Centro, Malasaña reúne bares de tapas, botecos mexicanos, restaurantes transados, casas noturnas e ateliês de artistas. Seu público é diversificado, apesar de jovens e roqueiros serem os mais assíduos. Democraticamente, todos se unem em outro fenômeno local, o botellón: beber na rua, quando todas as portas se baixam (o que é proibido por lei, mas às 3h, não há um policial nas ruas para fiscalizar o seu cumprimento).
Dois dos pilares desta movimentação, que começou por volta de 1975, ainda atraem um público fiel: as boates La Vía Láctea e El Penta, separadas por apenas um quarteirão. Nas duas, o rock espanhol produzido dos anos 1980 para cá tem a preferência nos set lists dos DJs.
Aliás, para um estrangeiro, é curioso acompanhar a reação dos frequentadores assíduos quando se toca um clássico do rock. Afinal, aqueles quarteirões viram surgir toda uma geração de artistas. Nesse sentido, Malasaña está para Madri como o Baixo Leblon, frequentado pela turma de Cazuza nos anos 1980, está para o Rio.
Malasaña carrega um espírito rebelde já no nome, em homenagem a uma humilde costureira, Manuela Malasaña, que se tornou heroína nacional na luta contra a presença francesa na Espanha. Em maio de 1808, aos 15 anos, ela foi assassinada pelo exército de Napoleão após ter golpeado, com sua tesoura, dois soldados que insistiam em revistá-la. A data do levante catalisado pela morte da adolescente batiza também uma das praças principais do bairro, a Dos de Mayo.
Decoração à mexicana, no La Catrina, em Malasaña / Foto: Eduardo Maia
Num clima de viva la revolución também estão alguns bares que escolheram o universo mexicano como tema. Não é difícil caminhar por Malasaña e Chueca, seu bairro vizinho, também altamente boêmio, e ver caveiras estilizadas, fachadas com cores marcantes e sombreros meio deslocados. Um dos mais populares é o La Catrina, com uma extravagante decoração mexicana. Imagens da Virgem de Guadalupe e de lutadores de luta livre ocupam pequenos altares e prateleiras.
Com rock e música latina como trilha sonora, o bar é pequeno, mas não sufocante. Do balcão, saem mojitos e margueritas, assim como as refrescantes cervejas mexicanas. Da cozinha, as tapas vêm com sotaque asteca e o inconfundível sabor e aroma das tortillas de milho, base para tacos, nachos e outras iguarias.
Se o assunto for comida, vale a pena conhecer o La Bardemcilla, da família do ator Javier Bardem, em Chueca. Se você for fã do cinema espanhol, vai se divertir com o cardápio, cheio de referências a filmes, com o ator no elenco ou não. Fatias de pão com ovos estrelados aparecem como "Huevos de oro estrellados", em referência a "Ovos de ouro" - este, com Bardem. Já o carro-chefe da casa, os croquetes de presunto, foi batizado como "Jamón Jamón". Qualquer lembrança do filme homônimo de 1992, com Bardem e Penélope Cruz , não é mera coincidência.
Uma rua onde brota boemia e tradiçãoFachada do Teatro Español, na Plaza Santa Ana, um bom ponto de partida para explorar a região de Huertas, em Madri / Foto: Eduardo Maia
O bucólico passado não condiz em nada com a agitação que se vê nas noites atuais da Calle de las Huertas, no Centro de Madri. O nome lembra uma época em que a via cortava singelas hortas. Séculos depois, brotaram por ali e no entorno dezenas de bares, restaurantes e casas noturnas. Dos mais variados tipos, como mandam os preceitos da agricultura sustentável. Brotam também histórias de um tempo em que escritores e dramaturgos espanhóis, e até um exilado Ernest Hemingway, viviam por ali.
A Calle de las Huertas começa na Plaza del Ángel e vai até o Paseo del Prado. Mas acabou emprestando o nome ao entorno. Um bom ponto de partida para explorar esse centenário reduto boêmio é a Plaza de Santa Ana, onde está o Teatro Español, fundado em 1849 (onde funcionava, desde 1583, o Teatro do Príncipe) e em atividade até hoje.
À noite, sua fachada neoclássica fica ainda mais bonita. O melhor ângulo para apreciá-la é da sacada do The Penthouse, sofisticado bar no terraço do ME Madrid Hotel, no lado oposto da praça.
À primeira vista, o segurança de cara feia na porta do hotel pode intimidar, mas a entrada é livre. Lá de cima, uma bela vista para a região é complementada por uma decoração sofisticada, com sofás e poltronas ao ar livre e um lounge sempre à meia-luz e música baixa. O ambiente não é tão descontraído como os de outros bares da vizinhança e os drinques, caros, custam em média 20 euros. Mas o visual compensa uma visita, sem compromissos.
A tradicionalíssima Cerveceria Alemania, onde Ernest Hemingway, na região de Huertas, em Madri  / Foto: Eduardo Maia
Também na Plaza Santa Ana está a Cervecería Alemania, que se orgulha de duas coisas: da qualidade de seu croquete de jamón e de ser um dos pontos preferidos de Hemingway na sua temporada espanhola. Pelas paredes, retratos e quadros de touradas, paixão do escritor americano. O serviço nas mesas não é o mais gentil, o que torna o balcão ainda mais convidativo.
Quase ao lado, na Plaza de Ángel, está o Café Central. O prato principal ali é o jazz, muitas vezes acompanhado por generosas porções de música latina e blues. Cardápio musical muito parecido com o do Populart, alguns metros adiante. As duas casas têm apresentações diárias de grupos espanhóis e internacionais, sem cobrar entrada. Por volta das 22h, quando começam os shows, já estão cheias. Por isso, é bom chegar um pouco antes para pegar lugar.
A música está sempre presente, mas a arte mais identificada com Huertas é a literatura. Na região, conhecida também como Bairro das Letras, viveram alguns dos principais escritores espanhóis, como Miguel de Cervantes e Lope de Vega. Para lembrar este passado, trechos de obras destes e outros, como Francisco de Quevedo, Gustavo Adolfo Bécquer, José Zorrilla e Jacinto Benavente foram gravados no piso da rua, por toda sua extensão.
Jocosa decoração do restaurantes Los Gatos, em Madri / Foto: Eduardo Maia
Já no clube Mi Madre era una Groupie, a poesia não está no chão, e sim nas paredes, tomadas por letras de músicas de compositores como Iggy Pop. Uma das casas noturnas mais populares entre o público rock'n'roll da cidade, tem música boa e bebida a bom preço.
Perto dali, quase chegando ao Paseo del Prado, está a escondida Calle de Jesús, endereço do Los Gatos, um curioso misto de restaurante e antiquário, com ótima comida e uma decoração no mínimo extravagante. Há cabeças de touros, camisas de times de futebol, pôsteres antigos, lustres barrocos, gramofones nas paredes e até um boneco, vestido como um fidalgo do século XVIII, com uma sugestiva plaquinha: "Da próxima vez, traga a sua mulher".
Lei antifumo, já em vigor, causa polêmica
Enquanto o mundo inteiro combatia o fumo em ambientes públicos fechados, a Espanha permanecia como uma ilha, onde o cigarro não era barrado em praticamente nenhum lugar. Desde o dia 2 de janeiro, quando a lei antifumo do país entrou em vigor, isso mudou. O cigarro passou a ser banido de bares, restaurantes, escolas, aeroportos e arenas de touros. A infração para os estabelecimentos que não cumprirem a norma vale uma multa entre 30 euros e 600 euros.
A causa, segundo o governo, é nobre, já que os números oficiais indicam que cerca de 55 mil pessoas morrem por ano por causas relacionadas ao tabagismo. Mas entre os fumantes, tão acostumados com a liberdade de não precisar levantar da cadeira para tragar o seu cigarro, e os estabelecimentos comerciais, que já imaginam a queda na frequência, a medida não caiu nada bem.
Os críticos da lei afirmam que ela é a mais severa entre os países do bloco do euro, já que não proíbe o fumo apenas em ambientes fechados, mas também em frente a escolas e hospitais e perto de parques infantis. Donos e funcionários de bares e restaurantes também seguem reclamando, sem sucesso. E já se adaptam às novas leis. Os avisos de proibido fumar se tornaram obrigatórios nas portas. Assim como os grupos de fumantes nas calçadas.
Mercado San Miguel:
Plaza de Oriente 3. Tel. (91) 541-5104. Diariamente, das 11h às 2h. www.mercadodesanmiguel.es
CHUECA E MALASAÑA
La Bardemcilla: Augusto Figueroa 47. Tel. 91 521 42 56. www.labardemcilla.com
La Catrina: Corredera Alta de San Pablo 13. Tel. 91 522 57 59.
El Penta: Palma 4. Tel. 91 447 84 60. www.elpenta.com .
La Vía Láctea: Velarde 18. Tel. 91 446 75 81. www.lavialactea.net
Estações de metrô próximas: Tribunal e Chueca.
HUERTAS
Café Central: Plaza del Ángel 10. Tel. (91) 369-4143. cafecentralmadrid.com
Cevecería Alemania: Plaza de Santa Ana 6. Tel. (91) 429-7033.
Los Gatos: Calle de Jesús 2. Tel. (91) 429-3067.
Mi Madre era una Groupie: Santa Polonia 5. Tel. (91) 420-3347.myspace.com/mimadreeraunagroupie
Populart: Huertas 22. Tel. (91) 429-8407. www.populart.es
Teatro Español: Príncipe 25. Tel. (91) 360-1480. teatroespanol.es
The Penthouse: Plaza de Santa Ana 14. Tel. (91) 701-6020. thepenthouse.es
Estações do metrô próximas: Tirso de Molina e Antón Martín.

Nenhum comentário:

Postar um comentário