sexta-feira, 11 de maio de 2012

No Jura, o vin jaune é estrela, mas há muito mais



Jorge Lucki/ValorOs vinhedos em volta de Château Chalon
Compondo uma espécie de santuário ao lado da porta da adega, junto a duas preciosas garrafas de vinho vazias, está um dos meus primeiros livros sobre o assunto, comprado em 1975. Sem luxo - quase formato de bolso -, mas bem abrangente, o "Guide du Vin", de Raymond Dumay, me permitiu ter uma visão mais ampla sobre esse universo maravilhoso, além de fazer um apanhado das regiões vinícolas da França. Foi direto na veia. Mais do que paixão, vinho virou obsessão.
Algumas passagens do livro chamaram minha atenção. Entre elas, uma sequência de curiosidades sobre o Jura, pequena e quase desconhecida região entre a Borgonha e a Suíça. Começava por ser a terra natal de dois dos personagens que mais marcaram a história da vitivinicultura atual e o nde ambos fizeram experiências: o cientista Louis Pasteur, que, por volta de 1870, decifrou o processo fermentação, fenômeno até ali tido como espontâneo; e Alexis Millardet, botânico que criou o método de utilizar porta-enxertos de videiras americanas para eliminar os problemas causados pela filoxera, que quase dizimou os vinhedos europeus na segunda metade do século XIX.
Jorge Lucki/ValorStéphane Tissot, que faz o Clos de la Tour de Curon
Em termos de vinho propriamente dito, o Jura tem muito a oferecer e o capítulo do livro referente à região me prendeu. Em especial quando citou o termo "vin jaune". Vin Jaune? Sabendo que existe vinho tinto, rosé e branco, pode parecer excesso de zelo alguém designar um vinho como "vin jaune", ou, traduzindo, vinho amarelo. Afinal, todo branco é, de certa forma, amarelo. Acontece que não é preciosismo. Vin jaune existe, tem vida própria e é inusitado em todos os sentidos.
Tem a ver, em parte, com a savagnin, única uva utilizada na sua composição e nativa do lugar. O que o vin jaune tem de mais original, contudo, é seu processo de elaboração, que contradiz todas as regras da enologia. Vinificado de maneira tradicional, o vinho é em seguida colocado em pequenos barris de carvalho por seis anos e três meses, no mínimo.
O barril não é preenchido integralmente e o vazio vai aumentando durante o tempo à medida que o líquido evapora. O vinho, inclusive, nunca é passado para outra barrica nem o nível é completado. O que em qualquer outro lugar viraria vinagre, no Jura resulta num vinho único e excepcional. A explicação está no véu que se forma na superfície do líquido e o protege do contato direto com o oxigênio, não permitindo que se deteriore.
Jorge Lucki/ValorEntrada da vinícola de Jean Macle, produtor emblemático da região
Essa proteção é uma cultura de leveduras específicas, um capricho da natureza que também ocorre na região de Jerez, no sul da Espanha. Ao contrário dos jerez, no entanto, o vin jaune não recebe adição de álcool, mantendo-se com sua graduação natural, ao redor de 14 graus. Ele ganha aromas ricos e exóticos: frutas secas, curry, champignons silvestres, sutis frutas brancas e casca de laranja, além de mais cremosidade e presença em boca, o que lhe confere bom potencial para se harmonizar à mesa. Entre outras opções clássicas de compatibilização estão foie gras, queijo comté ou gruyère suíço, bisques, pratos com curry e, em particular e por definição, o coq au vin jaune et aux morilles, especialidade local, no qual, em vez de se utilizar vinho tinto na preparação, leva vin jaune.
Outra característica da especialidade do Jura é sua grande longevidade. (Leia maisaqui )
Tendo em vista que o fenômeno do véu no interior das barricas depende de condições propícias, sujeitas sempre a variações climáticas, é de se supor que haja certa irregularidade em sua formação. Com efeito, há anos em que ele não ocorre por completo, como em 2001, quando praticamente não houve vin jaune, e casos, bem frequentes, em que a proteção não se forma em alguns dos barris, obrigando o produtor a perder parte da produção. Tudo isso, mais a perda por evaporação, reduz bastante a oferta desse precioso vinho do Jura. A propósito, a perda por evaporação - em torno de 40% ao longo dos seis anos e três meses - é o que está por trás do estranho volume de 62 cl da garrafa especial, com formato mais baixo, chamada "clavelin", que caracteriza os vin jaune.
Jorge Lucki/ValorChegada a Château Chalon
Entre as quatro A.O.C.s autorizadas a produzir vin jaune, Côtes du Jura, Arbois, L'Etoile e Château Chalon, há certo consenso que esta última reúne potencial para produzir os melhores. Fui ao Jura várias vezes, a última delas agora, em abril, num roteiro mais abrangente e profundo, não se limitando aos vin jaune e aos notáveis brancos elaborados com savagnin, rótulos que sempre persegui (e vou continuar perseguindo). Desta feita descobri belos chardonnays com personalidade própria, minerais e originais - diferentes da Borgonha e de qualquer lugar onde a casta merece citação e por preços ainda acessíveis.
Nenhum produtor apresenta uma gama tão ampla, consistente e com alto padrão qualitativo como Stéphane Tissot, que começou a participar mais ativamente da vinícola familiar - ainda mantém o nome dos pais André e Mireille Tissot (não confundir com a Jacques Tissot, vários degraus abaixo) -, em meados dos anos 1990. Contrariando conselhos de muitos, converteu tudo dentro dos preceitos biodinâmicos, foi buscar novas áreas e implantou novos vinhedos em terroirs diferenciados - seu Clos de la Tour de Curon, chardonnay plantado em 2002, é um primor - e conduz o Domaine com incrível rigor nos detalhes. Quando nos recebeu, perguntou quanto tempo dispúnhamos. Era para poder mostrar as vinhas, degustar das diferentes barricas e provar os vinhos já engarrafados. Foram mais de três horas, e 35 garrafas diferentes. É distribuído no Brasil pela De La Croix.
Jorge Lucki/ValorTissot ante seus vinhedos
Sem a mesma dimensão, em termos de vinhedos e de oferta de rótulos, cabe sempre destacar o recluso, mas brilhante, Jean Macle, produtor mais emblemático do Jura, que não arreda pé de suas instalações situadas numa rua estreita dentro de Château Chalon. Não é necessário. O segredo do extremo refinamento e pureza de seus vinhos está sensibilidade e experiência que ele carrega - herdada por seu filho Laurent, que hoje comanda a propriedade -, e o fato de seus (dois) vinhos refinadíssimos procederem de vinhedos excepcionais situados nas encostas íngremes que margeiam o vilarejo (encravado no alto de um penhasco). As poucas garrafas disponíveis no Brasil chegam pela Casa do Porto.
Outros nomes que merecem destaque e valem a visita são o simplório (a pessoa, não os vinhos) Jacques Puffeney; Domaine Ganevat, que ganhou lugar de honra na região após Jean-François deixar seu trabalho na Borgonha e assumir a vinícola familiar; Domaine Pignier, já na sétima geração, ocupando uma magnífica e bem preservada propriedade que pertencia aos monges da Ordem dos Cartuxos; e o Domaine Labet, com rótulos requintados. Nenhum destes está no Brasil, mas os consumidores brasileiros podem começar a conhecer melhor os vinhos do Jura com os bons exemplares dos domaines Rolet (Decanter), Geneletti e Château d'Arlay (ambos da Franco Suissa). Viagem rumo ao paraíso.

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