terça-feira, 30 de novembro de 2010

O notório saber de Niemeyer

Oscar Niemeyer reproduz desenhos de Brasilia


Que Oscar Niemeyer é o maior nome da arquitetura brasileira ninguém duvida. São do gênio mais que centenário diversas obras espalhadas em todo o mundo nas quais ele consegue extrair leveza de algo tão pesado quanto o concreto. Para enumerar as obras do mestre seriam necessários diversos parágrafos que tornariam chatíssimo qualquer texto sobre arquitetura. A lista de premiações, esta então daria mais de uma lauda, tamanho é o reconhecimento a este carioca, nascido em 1903 e que fará 103 anos no dia 15 do mês que vem. Brasília, seu maior legado, é uma ilha de concreto e vidro cercada de Niemeyer por todos os lados.
 
E é aí que mora o problema. A portaria do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural que determinou o tombamento arquitetônico de Brasília e firmou, em 1990, os gabaritos que regem o plano piloto, acabou alterada em 92 – para fins de conclusão. A portaria nº 314, 8/10/1992, Art. 9º, § 3º do IPHAN autoriza que “excepcionalmente, e como disposição naturalmente provisória, serão permitidas quando aprovadas pelas instâncias legalmente competentes, as propostas para novas edificações encaminhadas pelos autores de Brasília – arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer – como complementações necessárias ao Plano Piloto original”. Essa brecha – que permite apenas a Niemeyer e Costa (que em vida nunca se valeu da prerrogativa) pintar e bordar no projeto original – por motivos óbvios, é inconstitucional pois desrespeita o princípio da impessoalidade de uma lei.
Contratado sem licitação, muitas vezes por seu notório saber, o escritório de Niemeyer passou a desenvolver projetos na área tombada de Brasília, erigindo prédios fora do gabarito, driblando as regras urbanísticas. “Todo mundo – que quer escapar da legislação e ferir o plano piloto – entrega o serviço para o escritório dele. Niemeyer tem uma extensa rede de amizades que permite a ele exercer um monopólio sobre os projetos arquitetônicos da Capital Federal, revela a Opinião & Notícia a arquiteta, historiadora e professora da UNB, Sylvia Ficher.

A professora afirma que “da Rodoviária para baixo – salvo umas três ou quatro exceções – todas as obras são dele. Obras públicas exigem concurso público. É surpreendente que um único escritório fique com todos os projetos de obras públicas do país”. Na canetada de Niemeyer, graças à falha da legislação, o arquiteto exerce seu monopólio do que a professora denomina de “arquitetura cívica”. Os projetos de todos os tribunais superiores de justiça da capital são assinados por ele e se valem desse subterfúgio para ferir regras urbanas de gabarito.
É assim com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal Superior do Trabalho (TST), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – ao custo de R$ 336,7 milhões -, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) – pela bagatela de R$ 498 milhões – e TRF2 – por R$ 115 milhões. Ocorre o inacreditável: os tribunais ferem a legislação que deveriam proteger. Duvida você do que lê, mal acredito no que escrevo. Desde 2001, o escritório Arquitetura e Urbanismo Oscar Niemeyer já recebeu R$ 10,6 milhões por serviços realizados para o governo federal. Este ano, a empresa já recebeu cerca de R$ 1,3 milhão apenas pelo conjunto de pré-projetos para a nova sede do TSE.
Um exemplo de que Niemeyer tudo pode repousa impávido colosso no início do eixo monumental – área não edificante de Brasília. É a Catedral Militar da Rainha da Paz que acabou erguida graças ao autógrafo que é sinônimo de livre acesso. Inaugurada em 94, a igreja tem formato triangular que lembra uma barraca de campanha.

O arquiteto carioca Flávio Santoro – do escritório AJS Arquitetura e Design – lembra a O & N que quando Brasília foi criada, em escritórios provisórios e naquele clima de “50 anos em 5″, a arquitetura e o próprio país atravessavam um momento peculiar de criatividade artística e cultural que se evidenciou, na perspectiva do tempo, como um período único e propriamente datado, chamado Modernismo. “Acredito que as obras no Eixo Monumental deveriam ser encerradas e este espaço, preservado. Isso não impediria que Niemeyer continuasse mostrando sua arquitetura escultórica para o mundo, tendo reconhecido o seu legado histórico”, afirma.

A praça que não saiu do papel

Já para a Praça da Soberania, o governo do Distrito Federal – leia-se José Roberto Arruda – contratou o escritório de Oscar Niemeyer para fazer o projeto sem licitação e sem concurso público em local considerado non-aedificandi. O então governador aprovou a proposta publicamente: um obelisco inclinado instalado numa praça com piso todo de concreto no canteiro central da Esplanada dos Ministérios com o principal objetivo de “esconder” um estacionamento para três mil carros em seu subsolo.

O descontentamento e mal estar entre os arquitetos foi evidente diante da realização de mais uma grande obra pública, com a contratação de um escritório, sem a realização de concurso. Sylvia Ficher escreveu artigo denunciando o que chamou de “direito indiscutível de projetar que seria operado pelo escritório do arquiteto”. O seu texto causou todo tipo de reações, desde raivosas àquelas de apoio. O próprio Conselho de Planejamento Territorial do Distrito Federal (Conplan) já vinha questionando a legitimidade do dispositivo estabelecido pela Portaria nº 314. Em sua própria defesa, Niemeyer também se valeu de artigos e entrevistas sustentando que se Brasília precisava de modificações, caberia a ele o direito de fazê-las, lembrando que centros urbanos como Paris e Barcelona também sofreram alterações consideráveis. Esqueceu-se Niemeyer de que estas são duas cidades milenares. Importante lembrar que Haussmann redesenhou uma Paris caótica e a transformou nessa cidade alegre e cheia de possibilidades – bem diferente da nossa monótona capital. O arquiteto confrontou seus críticos dizendo que tratavam-se de pessoas desconhecidas.

Amigo de Niemeyer, Carlos Magalhães se manifestou contra a praça-estacionamento: “O Oscar é muito grande para se submeter a essa bobagem. Ele tem que compreender que Brasília não é mais dele e está se defendendo sozinha”. Niemeyer sentiu o fogo-amigo: “Eu me sinto muito apoiado pelos meus amigos, de modo que vou continuar. Estou numa trincheira e não abro mão. Sou um arquiteto, com um trabalho feito”. A polêmica retumbou na imprensa. Questionado sobre a aprovação instantânea do projeto do escritório carioca, Arruda – àquela altura com problemas demais na cabeça – alegou falta de previsão orçamentária para a obra e encerrou a polêmica. O mundo deu voltas, Arruda caiu em desgraça. A praça não saiu do papel.
Esse tipo de problema não ocorre apenas em Brasília. Em Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais, mais contestações: o escritório de Niemeyer ganhou sem licitação o projeto da nova sede do legislativo local no valor de R$ 1,25 milhão. O Jornal da Cidade fez uma enquete com seus leitores e 82,3% deles foram contrários a não realização de concorrência. “Não há porque existir uma reserva de mercado para Niemeyer, por mais genial que seja sua obra”, afirmou o procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do DF, Jorge Ulysses Jacoby.
A notória especialização é controversa e subjetiva como afirma ao O & N o advogado Raphael Nunes, do escritório Tavares, Matteoni, Freitas de Souza & Figueira de Mello: “Embora não seja a única causa de inexigibilidade em licitações, a “notória especialização” certamente é a mais controversa, justamente em razão da grande subjetividade envolvida em tal qualificação. O problema não está na norma, mas sim em sua interpretação, seja pelo Poder Público ou pelo particular beneficiado, pois comumente utiliza-se a “notória especialização” para burlar o processo licitatório e seus princípios mais basilares, tais como os da moralidade, economicidade e impessoalidade, por exemplo”, ensina.
A polêmica já atravessou fronteiras. Políticos e arquitetos alemães contestaram os custos altos e a ausência de uma concorrência formal que permitiu ao escritório carioca tocar o projeto do pólo de lazer aquático de Potsdam, em Brandemburgo. Naquele país, nenhuma obra pública pode ser contratada sem licitação ou concurso – salvo aquelas de valor artístico notável, condição da qual valeu-se Niemeyer.
No escritório no Rio, localizado na Avenida Atlântica, em Copacabana, na zona sul da cidade, o engenheiro José Carlos Sussekind é o principal interlocutor do arquiteto e o calculista que viabiliza os projetos rabiscados por Niemeyer. A neta Ana Elisa Niemeyer e o arquiteto Jair Valera são sócios no escritório. Ela é também a diretora executiva da Fundação que leva o nome do avô. Entrevistado certa vez, Niemeyer disse ter a seu lado engenheiros corajosos que apimentam seus projetos. São eles Emílio Baumgart, Joaquim Cardozo, Fernando Rocha Souza e Contarini. Segundo depoimento de quem frequenta o endereço, Niemeyer exerce pleno controle de qualidade sobre os projetos que cria. A esposa do mestre, Vera Lúcia, responde por sua assessoria de imprensa, mas é uma pessoa extremamente ocupada em reuniões e telefonemas. As inúmeras ligações feitas para o escritório esbarraram no eficiente Fabrício e na irritante musiquinha eletrônica que lembra o joguinho eletrônico Pac Man.

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