domingo, 18 de setembro de 2011

O Rio refém de um pirata



Publicada em 16/09/2011 às 21h28m
Pedro Doria (pedro.doria@oglobo.com.br)
Vista da Fortaleza de Santa Cruz / Custódio Coimbra
RIO- O dia 12 de setembro, em 1711, amanheceu encoberto por um nevoeiro daqueles que, se fosse hoje, faria o Santos Dumont fechar para pousos e decolagens. Não se via palmo à frente. E foi assim, aparecendo do nada e rompendo o branco, que a nau Magnanime cruzou a barra entre Rio e Niterói para ganhar o interior da Guanabara. A ela, seguiram-se a Brillant, a Achille, a Lys, um navio após o outro, todos pesadamente armados com 60, 70 canhões cada, 17 embarcações, 5 mil homens. O almirante francês René Duguay-Trouin começava sua conquista do Rio de Janeiro. Há 300 anos este mês.
Até ali, em menos de dois séculos de história, o Rio tinha sido pobre. O dinheiro no Brasil era nordestino. Vinha do açúcar. Mas uns quinze anos antes os paulistas descobriram o ouro que batizou as Minas Geraes e tudo mudou. O Rio era o porto forte para escoar a riqueza da qual Portugal começaria a depender. Em 1710, um grupo de franceses um quê desastrado tentara a invasão. Fracassou. Os cariocas de antanho estavam auto-confiantes.
Um desastre anunciado
A invasão de Duguay-Trouin foi um desastre, não precisava ter sido. Os ingleses, aliados dos portugueses na época, tinham avisado Lisboa antes de a frota francesa deixar a Europa. Como em Portugal não havia quem pudesse levar o recado, um navio britânico veio trazer a notícia. No final de agosto, sentinelas em Cabo Frio avistaram de longe as velas inimigas. Francisco de Castro Morais, o governador, sabia que eles vinham. E, por acaso, uma frota armada estava no porto da cidade. Havia defesas: 5 mil soldados, 2 mil marinheiros, 4 mil moradores armados. Mas, na véspera do ataque, o governador decidiu afrouxar as defesas. Achou que era só boato. Na História, ficou registrado o apelido que ganhou: Vaca.
Enquanto o Vaca batia a cabeça com seus lugares-tenentes, os franceses tiveram tempo para planejar. No dia 13, 500 homens desembarcarem na Ilha das Cobras, onde hoje fica o Arsenal da Marinha. De lá, tinham visada para o Morro de São Bento onde já estava o mosteiro. Foi das janelas de São Bento que Gil de Bocage, capitão de mar e guerra português nascido na França, liderava com canhões a principal frente de resistência da cidade. (Seu neto, bem mais famoso, seria o principal poeta árcade de Lisboa.)
Foi no dia 14 que Duguay-Trouin desembarcou. Seguia à frente nos botes, foi o segundo a botar os pés nas areias da praia em frente ao Morro da Conceição, onde hoje está um aterro. Com ele vinham 3,3 mil homens, 180 deles oficiais. "Vinte homens, do alto do morro, poderiam facilmente impedir nosso desembarque", lembraria anos depois um tenente. Mas, sem resistência, desembarcou seus homens, então canhões, conquistou o Morro da Conceição e tinha um segundo ponto do qual atacar os beneditinos.
O Rio que os franceses encontraram em 1711 era uma cidade delimitada pelo quadrilátero entre os morros de São Bento e Conceição ao norte, Santo Antonio e Castelo ao sul. O Castelo não existe mais, posto abaixo no início do século XX. Sobrou seu nome no lugar onde esteve. Na descrição do geógrafo Mauricio de Almeida Abreu, da UFRJ, a gente rica se concentrava no sul, principalmente na rua Direita (Primeiro de Março) e o barulho sobrava para a rua da Ajuda, onde estavam as tabernas. Para além daquela cidade miúda, pântanos, lagoas cheias de lodo e um mato ainda selvagem. A vila ainda não era cidade maravilhosa, título que chegou nos anos 1920. Mas já era, como descreveu um dos homens de Duguay-Trouin, "das mais belas e ricas colônias existentes".
Foi no dia 19 que o almirante francês sentiu-se confiante o suficiente para mandar ao Vaca seu ultimato por carta. O mensageiro foi vendado e levado ao governador. Ofereceram-lhe um trago enquanto esperava, tomou muitos. Voltou bêbado, três horas depois. "Minha resposta será sempre a mesma", escreveu Castro Morais. "Estou pronto a defender esta praça até a última gota de sangue." Fugiria em dois dias.
Era uma cidade tão diferente do Rio atual e que, no entanto, fincada no mesmo lugar, se portava igual. Assim como já amanhecia coberta pela bruma, também tinha o Sudoeste que soprava forte no fim da tarde, trazendo temporal violento de raios intensos e chuvas torrenciais. Duguay-Trouin planejava iniciar seu ataque na madrugada do dia 22, aproveitando-se da escuridão da noite no tempo pré-eletricidade. Os raios estragaram a surpresa revelando as manobras de ataque, mas o Vaca se acovardou. Às 18h do dia 21, um domingo, o governador ameaçou de execução sumária quem abandonasse o posto. Às 22h, deixou ele próprio a cidade.
Quando a notícia correu, pânico. As ruas de terra viraram lama, os cavalos e carroças pioravam os buracos. Quem não conseguiu fugir, buscou refúgio nos mosteiros. Em quase todos, ao menos. Os monges de São Bento, lugar que liderou a resistência, saíram todos com medo de represálias. Quando o dia 22 amanheceu, Lassalle, francês que participara da tentativa anterior de ataque, saiu tranquilo da prisão e foi a Duguay-Trouin levar a notícia. A cidade estava deserta. Era só entrar.
O corsário era um "perfeito gentil-homem", nas palavras do historiador britânico Charles Boxer. Galante, com fama de conquistador, um dos mais hábeis almirantes da história francesa ainda hoje lembrado no batismo de navios. Os meninos de escola ainda encontram, em seus livros, relatos de suas conquistas. Um pirata com carta de autorização do rei, que navegava com o pavilhão nacional. Corsário. Conquistou o Rio no dia 21 de setembro de 1711 e só saiu, mediante resgate, em 13 de novembro. Um sequestro de quase dois meses. O preço da libertação da cidade: 600 mil cruzados em ouro, 200 bois e 100 caixas de açúcar. Sem contar os saques.

Prefeito passou 30 anos na prisão

O novo ciclo econômico estava começando. Nos anos seguintes, o Rio ganhou muros e fortalezas. Cresceu. A igreja de São Bento se viu folheada a ouro. Com o deslocamento do centro para o sul, a cidade virou capital até um dia Juscelino Kubitscheck mudar de ideia.
Pelo Rio, o dinheiro que brotava das Minas seguiu o roteiro Lisboa, Londres, bancando o nascimento do Império Britânico. Assim como a Espanha antes, Portugal se viciou na riqueza fácil que nasce da terra. Na tese do historiador escocês Niall Ferguson, viciado assim não desenvolveu uma indústria financeira. Quando o ouro acabou, não tinha uma economia moderna capaz de financiar a industrialização. O ouro sustentou Brasil e Portugal por um século. Quando acabou, deixou os dois despreparados para o futuro.
Ao Vaca, que sequer tentou resistir, sobrou a condenação. Passou trinta anos preso numa fortaleza na Índia. Mas pelo menos um guardou boas memórias dos tempos do sequestro. Em 13 de outubro, numa carta descoberta pelo historiador Jean Marcel de Carvalho França, Francisco Xavier de Castro Morais, sobrinho e secretário do governador, escreveu a um capitão, intérprete de Duguay-Trouin. "Suponho vive vossa mercê do sentimento que muito o amo". Ansiava o momento "de lhe dar muitos abraços e beijar-lhe a mão" e que, "ainda que seja mais ao tarde, hei de dar-me de satisfação esse gosto" de vê-lo.

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