segunda-feira, 22 de março de 2010

Entreouvidos

O artigo abaixo foi publicado em o Globo no dia 20 de Março de 2010. Muito bem escrito. Um primor. Ilustra muito bem a questão dos preconceitos. Para entender o último paragrafo é preciso entender que o Arnaldo Bloch é botafoguense

Judeus, Árabes, Negros: tudo a mesma coisa

Tudo começou, porque chamei um amigo de judeu. Sem ofensas: ele não é judeu, tem origem 100% italiana, mas com nareba absurda, estereotípica.
Como se Judeu tivesse que ter narigão...
Eu sou judeu e tenho um nariz de bata noisette. Judeu é o provo mais misturado que tem, o que é um baita paradoxo.

Mas era aniversário do meu amigo narebudo e eu o saudei assim:
__ Parabéns, judeu.
Ao que ele respondeu de bate-pronto:
__Não sou judeu. Sou flamenguista.
O diálogo, entreouviso num foro de e-mails que frequento, gerou, por associação livre de idéias, relatos de outras flas, uma delas entreouvida num boteco do Centro:
__ Não sei por que brigam tanto, judeu e árabe é tudo a mesma raça, na verdade são todos pretos...
Então me lembrei de uma colega aqui do jornal que dizia, jocosamente (ainda bem que era jocosamente):
__Aranldo, o que eu gosto na sua pessoa é que você é um judeu de alma branca.
Outro colega, um dos dez chefes que tinha aqui no jornal, pegava no meu pé:
__Arnaldo Bloch, o seu problema é que você não se chama Arnaldo Marinho.
Pior era o que um artista gráfico dizia para a minha mãe, elogiasamente, nos tempos que todos trabalhavamos em Manchete:
__Iná, você é uma judia diferente.

O que me levou nessa sequência memorianalística, à clássica piada do negro que, na Nova York dos anos 30, lê tranquilamente, num banco do Central Park, um jornal em ídiche. Ao ver a cena, um judeu, que passa por lá não resite e pergunta em ídiche:
__Ir zaint a íd? (O Senhor é Judeu?)
Em ídiche castiço e com a maior naturalidade, o negro responde:
__Nor dus ot mir guefelt... (Só me faltava isso...)

Judeus e negros sempre estiveram lado a lado, não só nas piadas preconceituosas, ou na analogia que se pode fazer entre as duas correntes diaspóricas, minoritárias e perseguidas, mas também nas artes (que o diga a canção americana) e na convivência: aqui pertinho do jornal, na Cidade Nova, berço do samba, das tias baianas, judeus e negros nas primeiras décadas do século passado andavam namorando, casando, celebrando shabat e batendo muita palma em terreiro (judeu adora uma macumba e os irmãos africanos têm o maior interesse numa sinagoga).

Nessas horas a memória não para, e, da piada novaiorquina e das reniniscências dos tempos que não vivi, voei adiante e fiz uma pausa na Rua Duvivier, anos 70, uma espécie de beco, ou um muro, ou a traseira de um prédio. Um garoto fortudo com quem eu batia bola na praia me surpreende e me puxa pelo colarinho, com ânsias de ultraviolência.

__Porque você é assim?
__Assim como?
__Assim, judeu.
__Como assim?
__O que aconteceu? Você nasceu desse jeito, ou foi só porque arrancaram seu peru?
__Não arrancaram meu peru.
__Você nasceu assim? O que tem de diferente em você? Você se acha especial?
__Não. Não tem nada de diferente. Só que os judeus religiosos não acreditam em Cristo, mas no Pai dele. Vocês também acrditam no pai, o criador. E os judeus foram expulsos pelos romanos. E foram perseguidos na Inquisição. E foram assassinados na Alemanha e na Polônia. E hoje moram no mundo inteiro.
__É só por isso?
__Só isoo.
__E o peru?
__O peru está lá.
__Não cortaram?
__Cortaram uma pele. Uma membrana. ë o modelo cogumelo.
__Sem trombinha?
__Sem trombinha
__Por quê?
__É uma história complicada. Uma aliança. E tem um negócio de higiene. Os arabes também cortam.
__E você se acha mais limpo do que eu por causa disso?
__Não, não acho nada. Não tenho culpa. Quando cortaram, eu já não podia fazer nada. Quando vejo uma tesoura no banheiro antes de tomar banho, fico apavarado.
__No duro?
__No duro.
__Quer dizer que você se lembra quando cortaram?
__Lembrar não lembro não. sei lá.
__Então tá.
__Tá o quê?
__Não vou te dar porrada. Sua explicação é suficiente.
__Você ia me dar porrada só porque sou judeu?
__Ia
__Bom, não ia ser a primeira vez.
__Vamos jogar bola?
__Vamos.

Dei toda essa volta e acordei de novo, para discussão, que se travava no e-mail. Num outro boteco, entreouvido por alguém:
__Vão dizer que é preconceito, mas a verdade é que flamenguista não passa nem em Universidade do Chile...

Arnaldo Block

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